Dr. Edno Magalhães
No segundo semestre de 1969 eu já fazia parte do quadro da Unidade de Anestesiologia e Gasoterapia (UAG) do Primeiro Hospital Distrital de Brasília (1º HDB), atualmente Hospital de Base do Distrito Federal. Logo depois surgiu a ideia de se criar uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) para o 1º HDB de Brasília que funcionaria sob a coordenação do Dr. Miguel Marcondes Armando, natural do Mato Grosso.
Miguel procurava voluntários para fazer parte da nova unidade, mas enfrentava dificuldades para encontrá-los. Como eu já havia tido alguma experiência nessa área durante meu 2º ano de residência com o professor Zairo Vieira no Hospital da UnB em Sobradinho (onde cuidávamos de um setor que mesmo sem aquele nome já tratava somente os doentes mais graves), me apresentei espontaneamente. Três outros colegas recém saídos da residência médica no próprio 1º HDB também se apresentaram.
Assim, o corpo clínico da nova unidade teve como seus primeiros médicos o Dr. Miguel Marcondes Armando, como Coordenador e os Drs. Edno Magalhaes, Cyro Luiz da Silva, Itacir Arlindo Franceschini e Aloísio Toscano Franca, como plantonistas. Além desses profissionais, havia quatro enfermeiras que receberam treinamento dos próprios médicos. Foram elas as Sras. Adir Costa (Coordenadora do grupo), Isa, Olímpia e Hildete.
O Dr. Miguel procurou contato com algumas unidades de terapia intensiva no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte, que foram visitadas por nós, os quatro futuros plantonistas. Foi uma viagem altamente lucrativa porque tomamos conhecimento das novidades e do progresso tecnológico no acompanhamento de pacientes em UTI. Por outro lado, nos deu a oportunidade de estreitar nossos laços de amizade, o que muito ajudou nos primeiros tempos de atividade da nossa UTI.
A inauguração da UTI do 1º HDB foi marcada, em princípio, para o início do ano de 1970. No início do mês de setembro ocorreu um grave acidente no plano piloto de Brasília, envolvendo a secretária particular do governador em exercício. A paciente chegou à emergência do hospital com um quadro grave de poli traumatismo, envolvendo múltiplos órgãos, o que deu um grande trabalho para a equipe de cirurgia do hospital. Muito pressionado, o diretor geral do hospital nos solicitou a antecipação da abertura e o início dos trabalhos da futura UTI, de modo a poder atendê-la no pós operatório imediato. O quadro era gravíssimo e infelizmente não foi possível evitar o óbito.
Também não foi possível aguardar mais pela programada inauguração. Estava aberta a nova UTI do 1º HDB localizada na extremidade direita do 2º andar do prédio principal do hospital. Tínhamos 4 leitos em uma área maior a direita de quem entrava na unidade e 2 leitos em outra área menor a esquerda, que funcionava como uma espécie de isolamento para pacientes graves e contaminados. O entusiasmo dos plantonistas capitaneados pelo Dr. Miguel Marcondes era excelente. Éramos todos jovens e a impressão que se tinha era que não havia carga horária que nos atacasse. Trabalhávamos muito e atendíamos a contento todos os casos graves que nos eram encaminhados. Tratava-se de uma novidade no atendimento do maior hospital existente no Centro Oeste do Brasil e para ele passaram a ser drenados todos os casos graves que ocorriam no Distrito Federal e seu entorno.
Muito importante foi o fato que descobrimos com o passar o tempo: a nossa UTI fora a primeira a iniciar seu atendimento na região Centro Oeste do Brasil. A nossa carga de trabalho era muito grande o aprendizado era ótimo e todos se esforçavam para transmitir aos outros alguma coisa que sabia a mais. A nossa atividade não se resumia apenas ao atendimento. Discutíamos todos os casos que eram atendidos, participávamos das reuniões clinicas do hospital e nos dedicávamos a ministrar ensinamentos ao corpo de enfermagem que se transformou num quadro de excelência dentro do hospital.
Aos poucos fomos recebendo outros colegas, que depois de treinados por nós, eram incorporados ao quadro, redistribuindo a carga horária dos plantonistas e facilitando a montagem da escala da unidade.
Passados 12 a 18 meses aproximadamente, a saudade bateu e resolvi voltar para as salas de cirurgias no próprio 1º HDB.
Eram 15h do dia 14 de março de 1985. Estava em casa juntando documentos para a declaração de imposto de renda, quando recebi um telefonema do diretor do nosso hospital que agora já se chamava Hospital de Base do Distrito Federal (HBDF). O diretor me pedia que mantivesse o telefone ligado pois ocorreria um atendimento no hospital no qual ele precisaria da minha participação como profissional. Disse-me ainda que por telefone não poderia falar sobre o paciente. No restante da tarde e início da noite continuei a receber muitos avisos da parte do diretor, sem que me fosse dito exatamente do que se tratava.
Às 21h do dia 14 de marco de 1985, fui convocado ao hospital: deixei claro que participaria do atendimento desde que me dissessem qual era o caso, quem era o paciente e quem seria o cirurgião. Não foi surpresa para mim saber que o cirurgião era o Dr. Francisco Pinheiro Rocha. Estávamos acostumados a atender juntos políticos influentes e membros do corpo diplomático de Brasília. Entretanto foi uma grande surpresa saber que o paciente era o futuro quase presidente da república. A agitação em Brasília nesta altura era grande, envolvendo autoridades e políticos que se encontravam na cidade.
Este atendimento e os desdobramentos seguintes foram aumentados no decorrer do tempo com informações falsas, invencionices e todo tipo de maldade que poderia ocorrer em função da importância política que envolvia aquele paciente. Somente consegui ficar a sós com o paciente e sua esposa, que o acompanhava, durante 35 minutos antes da decisão de se iniciar a cirurgia. O paciente negava qualquer informação a respeito de doenças ou uso de medicamentos, dizia que usava apenas vitamina E. O que eu tinha como informação até então era um hemograma indicativo de infecção, boatos de um mal estar cardíaco em uma viagem ao exterior (o que era negado pelo paciente). Havia também o resultado de uma cineangiocoronariografia realizada em 1977 onde se lia: Área de ventrículo esquerdo com hipocontratilidade pronunciada e uma obstrução na descendente anterior. Notava-se ainda que o paciente apresentava uma respiração tipicamente abdominal própria do idoso sedentário.
O ato anestésico iniciou-se com o auxílio de mais três colegas anestesiologistas à 01h do dia 15 de março 1985, no centro cirúrgico central do 1º HDB e o ato cirúrgico, à 1h10min. Às 03h30min com o paciente respirando espontaneamente e com reflexo de vias aéreas presentes foi realizada a extubação traqueal. Foi necessário utilizar furosemida (2 ampolas) e aguardar o aumento da diurese e diminuição dos estertores de base que reduziram-se bastante com o aumento da diurese. A pressão arterial e a frequência cardíaca eram totalmente normais às 5:00hrs, quando acompanhamos o paciente na maca até a UTI.
Respirava espontaneamente, estava consciente e hemodinamicamente estável. Estas eram as condições de admissão na UTI, verificadas pelo plantonista que recebeu o paciente, conforme consta no seu prontuário. Nenhum Raio-X de tórax realizado durante a internação do paciente mostrou sinais de aspiração de conteúdo gástrico ou pneumonia. Infelizmente, no pós operatório desse paciente ocorreram muitas interferências que na realidade, foram as responsáveis pelo trágico desfecho desse caso.
Resolveu-se reunir uma equipe de “notáveis” composta por cinco ou seis professores de fora de Brasília, entre eles um “professor de São Paulo”, que veio acompanhado de dois assistentes. Das reuniões de notáveis resultou uma segunda intervenção no dia 20 de março por insistência do referido professor que realizou a cirurgia com o auxílio do Dr. Francisco Pinheiro Rocha, que elegantemente lhe passou a posição de cirurgião. Resultado: laparotomia branca, como falamos nos meios cirúrgicos para cirurgias nas quais nada se encontra.
No pós operatório dessa segunda cirurgia o professor e seus assistentes insistiram em passar uma sonda via esôfago até o duodeno, apesar de termos avisado que era praticamente impossível passar uma sonda gástrica ou qualquer outra em virtude de uma grande hérnia diafragmática do paciente. Essas manobras resultaram em sangramento e na transferência do paciente para o Hospital do Coração em São Paulo, sob a responsabilidade do referido professor e seus assistentes.
Lá o paciente foi submetido a mais dois atos cirúrgicos (em 26 de março e em 12 de abril), além de outros procedimentos intermediários para tratamento de hérnia estrangulada, drenagem de abscesso intra-abdominal e traqueostomia. No dia 21 de abril de 1985 foi declarado o óbito desse paciente.
Participar desse caso, foi a atuação que mais me incomodou em toda a minha vida profissional, já agora com mais de 50 anos, principalmente pelo comportamento inadequado e antiético daquele “professor de São Paulo”. Procurei omitir todo e qualquer nome de participantes do grupo, citando tão somente o do Dr. Francisco Pinheiro Rocha como uma homenagem pela sua atuação respeitável, ética e de excelente postura profissional e o grande injustiçado deste caso.
Além dessas atuações, duas outras muito me honraram, pela participação na história da medicina de Brasília. Por duas vezes fui convocado, uma das vezes pelo então Secretário de Saúde e outra pelo próprio Governador do Distrito Federal, para assumir a direção geral do Hospital de Base do Distrito Federal.
Na primeira vez deram-me como tarefas principais, instalar e pôr em funcionamento aparelhos adquiridos e encaixotados há 4 anos. Entre eles, um tomógrafo computadorizado (que foi o primeiro da Secretaria de Saúde do Distrito Federal), e componentes digitais para funcionamento da hemodinâmica e dos exames de mamografia. Passei muitas horas respirando poeira dentro de obra, mas coloquei em funcionamento esses equipamentos, que tanto atormentavam a cúpula da Secretaria de Saúde. Ocorrendo mudança de governo no Distrito Federal e na Secretaria de Saúde, pus o cargo à disposição e voltei para as salas de cirurgia.
A segunda foi quando tínhamos no Hospital de Base, como anexo, uma grande construção que se destinava a instalação de um novo Pronto Socorro, pois o antigo estava em situação tão precária que era carinhosamente apelidado pelos plantonistas de “chiqueirão”. Ali seriam instalados um novo centro cirúrgico, com 11 salas de cirurgias e espaço para amplas salas de recuperação, área para internação de pacientes de transplantes, área também para internação de pacientes da neurocirurgia e novas e amplas áreas para a UTI e uma unidade coronariana.
Por questões políticas, apesar de praticamente pronta a obra física, a área não era concluída e posta em funcionamento. Por incrível que pareça, havia sabotagem de todos os tipos possíveis e imagináveis. Essa situação incomodava bastante o Governador em exercício do Distrito Federal. Como tínhamos amigos em comum, ele sabia que eu estava querendo ir para São Paulo concluir o meu Doutorado.
Convocou-me um dia ao seu gabinete e me fez uma desafio: “Você assume o Hospital de Base, termina aquela obra e a coloca em funcionamento, inclusive com instalação de um novo tomógrafo no Pronto Socorro. Feito isso, eu lhe concedo a licença para ir a São Paulo terminar o seu Doutorado”. Topei a proposta, concluí as obras e inaugurei o prédio com a presença do Governador e do Ministro da Saúde dentro do prazo que me concederam e fui concluir o meu Doutorado em São Paulo, na UNIFESP.