top of page

Dr. Laércio Moreira Valença

Panorama brasileiro 4 décadas atrás

 

Após 21 anos, o regime militar que governou o País terminou formalmente  em 21 de abril de 1985 com a posse de José Sarney como novo Presidente da República. Eram tempos de inflação alta, 235% em 1985, atingindo a enorme cifra de 1.037% em 1988. Em 9 de maio de 1985, o Presidente Sarney nomeou José Aparecido de Oliveira como novo Governador do Distrito Federal (DF), cargo ocupado por ele até 19/09/1988.

A reabertura democrática aliada à instabilidade econômica do País, com os já mencionados elevados índices inflacionários, deu ensejo ao surgimento de  muitas demandas trabalhistas. O setor da saúde do DF, em especial, foi bastante afetado por inúmeras e prolongadas greves.

 

A saúde pública no DF

 

Como o sistema de atendimento à saúde no Distrito Federal estava sendo objeto de frequentes críticas pela imprensa e pela população, o Governador instituiu, em março de 1986,  um Grupo de Trabalho  para formular uma redefinição do sistema de saúde, o qual ficou assim constituído:

 

Alberto Henrique Barbosa, Secretário de Saúde do Distrito Federal; Carlos Eduardo Venturelli Mosconi, ex-Secretário de Saúde do Distrito Federal; José Alberto Hermógenes de Souza, Secretário-Geral do Ministério da Saúde; José Saraiva Felipe, Secretário de Serviços Médicos do Ministério da Previdência e Assistência Social; Aloísio de Guimarães Sotero, Secretário-Geral do Ministério da Educação; Cristovam Ricardo Cavalcante Buarque, Reitor da Universidade de Brasília; Geraldo Rodrigues Guimarães, Superintendente Regional do INAMPS do Distrito Federal; Laércio Moreira Valença, Conselheiro da Fundação Hospitalar do Distrito Federal; Anísio Pires, Presidente da Associação Médica de Brasília; Ernesto Silva, médico da Fundação Hospitalar do Distrito Federal; Elias Tavares de Araújo, membro da Comissão do 12º Plano Trienal e Ignácio Republicano de Oliveira, representante do Instituto de Tecnologia Alternativa do DF.

 

Esse Grupo, sob a minha coordenação e em um  prazo de 30 dias,   apresentou ao Governador  as  suas conclusões em um documento denominado  REDEFINIÇÃO DO SISTEMA DE SAÚDE DO  DISTRITO FEDERAL , a seguir transcrito, e que nas m  Considerações Gerais enumerava:  

 

a)      Priorização absoluta para a melhoria do funcionamento do sistema de  atendimento, de modo a traduzir, na prática, maior benefício e satisfação aos usuários pelos serviços prestados em todos os níveis de atenção.

b)      Integração entre as várias instituições de saúde do DF, com vistas à plena utilização de todos os recursos existentes, humanos, materiais e financeiros, evitando-se assim o desperdício ora verificado, tanto pela superposição de ações e/ou ociosidade em vários setores.

c)      Revisão da política de recursos humanos, objetivando a elevação da qualidade do ensino e da competência profissional, em todos os níveis, assim como a justa retribuição financeira em função das tarefas executadas.

 

A seguir, o documento elencou proposições de Ordem Geral:

1.1  Criação de um Sistema Unificado de Saúde no Distrito Federal – SUS-DF- por meio da integração dos órgãos subordinados  ao Governo do Distrito Federal (Secretaria de Saúde, Fundação Hospitalar do Distrito Federal e Instituto de Tecnologia Alternativa), Ministério da Previdência e Assistência Social (INAMPS), Ministério da Saúde e Ministério da Educação (FUB).

1.2  Maior autonomia administrativa e orçamento  financeiro individualizado das várias unidades do sistema, de forma a desenvolver uma consciência crítica das necessidades e disponibilidades do setor.

1.3  Desenvolvimento de um programa  de ensino  e pesquisa em cooperação com a Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília (FS-UnB).

1.4   Estímulo à competência, com formação de recursos humanos à altura das necessidades do sistema.

1.5  Provisão de recursos que permitam a plena utilização da capacidade instalada do sistema, de forma particular a ativação de todos os leitos hospitalares disponíveis no Plano Piloto.

1.6  Incentivo à organização de Conselhos Comunitários de Saúde e de um corpo de voluntários.

 

As proposições do Grupo em relação à atenção primária de saúde foram:

2.1. Otimização das atividades dos Centros de Saúde através das seguintes medidas:

            2.1.1.  Educação continuada dos profissionais, com ênfase na formação generalista.

            2.1.2.  Trabalho médico com agenda em aberto, permitindo a agilização do atendimento.

            2.1.3.  Atenção às necessidades imediatas de socorro, inclusive no expediente noturno.

            2.1.4. Distribuição gratuita de medicamentos básicos.

            2.1.5.  Aprimoramento do processo de referência e contra-referência.

            2.1.6.  Estreitamento da cooperação com outras entidades nos programas de nutrição humana.

            2.1.7.  Implementação da assistência odontológica.

            2.1.8.  Adequação do quadro de funcionários.

            2.1.9. Criação de Centros de Saúde Modelo, para fins docentes e assistenciais, em colaboração com a F.S.-UnB e o ITA.

 

2.2. Modelo alternativo de prestação de serviços de saúde.

            2.2.1.  Implantação de projeto piloto de atendimento primário através do médico de família.

 

3.  Em relação à atenção secundária e terciária

            3.1. Sempre que possível, os profissionais deverão cumprir dois turnos de trabalho, pela integração de  dois vínculos.

            3.2.  Preenchimento dos cargos de chefias de serviços médicos através de concurso público de títulos e provas.

            3.3.  Aprimoramento do processo de referência e contra-referência através de articulação adequada dos níveis de complexidade primário, secundário e terciário.

            3.4.  Ativação de todos os ambulatórios existentes nos hospitais regionais das cidades satélites.

            3.5.  Criação de um complexo hospitalar de base no Plano Piloto, através de uma reordenação nas unidades existentes.

                        3.5.1.  O Hospital de Base do Distrito Federal abrigará os serviços que demandem tecnologia de complexidade terciária tais como: cardiologia, cirurgia cárdio-vascular, neurologia, neuro-cirurgia, politraumatismo, transplantes, oncologia clínica  e cirúrgica, cirurgia geral e clinica médica (nível terciário).

                        3.5.2. O Hospital Regional da Asa Sul (HRAS) e o Hospital do Distrito Federal Presidente Médici (HDFPM) concentrarão todo o atendimento, inclusive urgências, nas especialidades de gineco-obstetrícia, pediatria e cirurgia pediátrica.

                        3.5.3.  O Hospital Regional da Asa Norte (HRAN) responsabilizar-se-á pelos atendimentos em traumato-ortopedia, oftalmologia, otorrinolaringologia, urologia, cirurgia plástica, clínica cirúrgica, clínica médica e psiquiatria.

                        3.5.4. O Hospital do Aparelho Locomotor (HDAL- Sarah) participará do complexo hospitalar através de cooperação nas áreas de recursos humanos, normatização de rotinas, diagnóstico e tratamento.

                        3.5.5.  O atual serviço de emergência do Hospital de Base passará a ter autonomia administrativa e quadro de pessoal próprio e destinar-se-á, precipuamente, ao atendimento médico-cirúrgico de adultos, de forma integrada ao complexo hospitalar de base do Plano Piloto e aos hospitais das cidades satélites.

                        3.5.6. O Hospital Regional da Asa Norte (HRAN), o Hospital Regional da Asa Sul (HRAS) e o Hospital Presidente Médici manterão serviço de emergência ou de pronto atendimento para adultos.

                        3.5.7.  O Hospital Presidente Médici e o HRAS manterão os serviços clínicos e cirúrgicos em nível secundário.

 

            3.6. A Faculdade de Ciências de Saúde da Universidade de Brasília )FS-UnB) integrará o sistema através de ampla participação discente, cessão e contratação de pessoal docente e técnico, fornecimento de equipamentos destinados à informática, pesquisa e projetos especiais, bem como recursos bibliográficos.

                        3.6.1. Para atingir tais objetivos, a FS-UnB ampliará substancialmente seu corpo docente, devendo privilegiar os recursos humanos já existentes no DF.

                        3.6.2.  Os profissionais da área da saúde que participarem das atividades de ensino receberão título universitário correspondente à sua qualificação.

            3.7   Em relação aos hospitais militares recomenda-se a cooperação nas áreas de recursos humanos, diagnóstico e terapia.

 

 

Cerca de dois meses após a apresentação das conclusões desse Grupo de Trabalho, fui indicado para o cargo de Secretário de Saúde do Distrito Federal, função que exerci de 09/06/1986 a 14/10/1988, cumulativamente com o de Presidente da Fundação Hospitalar do Distrito Federal (FHDF).   Embora a Secretaria fosse naturalmente responsável pelas ações de saúde pública no DF e gerenciasse órgãos como o Hemocentro e o Instituto de Saúde, a assistência médico-hospitalar, prestada pela FHDF, demandava grande atenção. É suficiente dizer, como mostram os quadros abaixo, que a  FHDF, com um esquema organizacional   bastante centralizado, gerenciava na época um corpo de funcionários de cerca de quinze mil pessoas e mais de dois mil leitos hospitalares.  Um panorama dos recursos disponíveis para a saúde pode ser contemplado nos seguintes dados, conforme trabalho elaborado por Saraiva Felipe e Tavares de Araújo (2):

 

DISTRIBUIÇÃO DOS LEITOS HOSPITALARES, POR PRESTADOR, NO DISTRITO FEDERAL (1988)

 

Setor

Rede

Número de leitos

Percentual

Público

SUDS-FHDF

2.318

46,9%

 

Hosp. S. Kubitschek

611

12,4%

 

Hospitais Militares

378

7,7%

Subtotal

 

3.673

74,4%

Privado

 

1.263

25,6%

Total Geral

 

4.936

100.0%

 

DISTRIBUIÇÃO DOS RECURSOS HUMANOS NAS UNIDADES DA FHDF POR CATEGORIA PROFISSIONAL E TIPO DE UNIDADE (1987)

 

Categ. Prof.

Hospitais

Ctrs. de Saúde

Total

Percentual

Médico

1.962

387

2.349

15,6

Odontólogo

57

81

138

0,9

Enfermeiro

658

172

830

5,5

Farmacêutico

99

1

100

0,7

Tec. Laboratório

477

3

480

3,2

Téc. Radiologia

174

7

181

1,2

Aux. Enferm.

3.127

654

3.783

25,2

Ag. Administ.

947

208

1.155

7,7

Outros

5.062

942

6.004

40

Total

12.569

2.455

15.020

100

 

                O orçamento elaborado para o Setor Saúde do Distrito Federal, para o ano de 1987, estimava gastos de Cz$ 3.400.000.000.00 conforme a POI/87. Desse total, 72% foram destinados à FHDF/Secretaria de Saúde. Se essa soma fosse atualizada para reais em 2023, os valores poderiam variar bastante, conforme o índice do Banco Central empregado: pelo IPC-SP (FIPE) resultaria em aproximadamente R$ 1.784.982.000,00; pelo INPC (IBGE), em R$ 2.772.063.000,00; e pelo IGP-DI (FGV) 4.749.293.000,00. A população estimada do DF em 1988 era de 1.725.222 habitantes (CODEPLAN).

 

Um depoimento publicado na Revista da AMBr, nº 39, de agosto de 2003, feito ao Dr. Ernesto Silva (3), transcrito a seguir, resume vários pontos da minha gestão:

 

“O trabalho desenvolvido pela administração à frente da Secretaria de Saúde, no período de junho de 1986 a outubro de 1988, teve como balizamento as propostas de Redefinição do Sistema de Saúde feitas pelo Grupo de Trabalho criado pelo governador José Aparecido, em março de 1986.

Nesse período, o sistema público de saúde no Brasil foi objeto de grandes transformações, que se refletiram naturalmente no Distrito Federal. O convênio que havia implantado as ações integradas de saúde foi substituído pelo convênio nº 090/87, assinado em 30/09/87, o qual instituiu o Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde no Distrito Federal. O SUDS-DF constituiu-se em uma etapa intermediária para o Sistema Único de Saúde consagrado na Constituição de 1988. A assinatura deste convênio permitiu iniciar-se o trabalho de integração dos recursos físicos, materiais e humanos do Governo do Distrito Federal com outros signatários: Ministério da Previdência e Assistência Social, Ministério da Saúde e Ministério da Educação, tendo com intervenientes INAMPS, SUCAM, INAM, FUB e FHDF. O financiamento do SUDS passou a ser feito através de coparticipação das instituições nele envolvidas mediante orçamente unificado, cessando então a relação entre a FHDF e INAMPS  de pagamento pelos serviços prestados com base na produtividade.

No programa de trabalho desenvolvido nesse período, buscou-se a melhoria do funcionamento do sistema de atendimento à população através da integração entre as várias instituições públicas de saúde do Distrito Federal, com vistas à plena utilização de todos os recursos existentes, evitando-se superposição de ações e/ou ociosidade em vários setores.

Dentro deste contexto, o ex-Hospital Presidente Médici passou a ser cogerido pela Universidade de Brasília, sob a denominação de Hospital Docente-Assistencial. Em nível de Fundação Hospitalar do Distrito Federal, entre maio de 1985 e maio de 1988, o salário dos médicos foi atualizado acima da inflação, passando de 6,5 para 10,1 salários mínimos. Foi ainda desenvolvida uma política de estímulo profissional, com o aumento do número de bolsas de estudo no Brasil e no exterior e com a efetivação de convênios para treinamento de pessoal de níveis médio e superior com a Fundação Zerbini e a Faculdade de Saúde Pública  da Universidade de São Paulo. Atendendo-se à importância do gerenciamento dos serviços de saúde, foram ministrados cursos de liderança e, após um interregno de oito anos, reinstituído um curso anual de  administração hospitalar, destinado a funcionários da FHDF no exercício de cargos de direção. A este trabalho aliaram-se medidas de descentralização administrativa, tanto na área de pessoal quanto financeira, com vistas a dar maior autonomia às Regionais de Saúde da Fundação Hospitalar e de incentivo para a participação da comunidade através da dinamização das Comissões Locais Interinstitucionais de Saúde.

Havia na ocasião uma necessidade premente de reformas e recuperação de várias unidades, tais como centros de saúde, hospitais e setores de apoio. Praticamente todas as Regionais foram beneficiadas com melhorias, mas merecem destaque as construções do Pronto Socorro do Hospital Regional de Planaltina, da ala de internação do Hospital São Vicente de Paula e de postos de saúde e a ampliação do Hospital Regional da Ceilândia de 150 para 200 leitos, além de reformas no setor de internação no Hospital Regional do Gama e no Hospital de  Base.

No âmbito da Saúde Pública deu-se ênfase aos programas de vigilância epidemiológica, imunização, assistência integral à saúde da mulher e da criança, controle de doenças sexualmente transmissíveis e da síndrome da imunodeficiência adquirida (Aids).  A mortalidade infantil em 1988 atingiu a taxa de 21,4 – a mais baixa da história do Distrito Federal. Com o objetivo de se melhorar a resolutividade  dos Centros de Saúde, criou-se um programa para médicos generalistas. Os egressos desses cursos foram alocados para Centros de Saúde no Gama e Ceilândia.

A busca pela melhoria na qualidade da assistência estendeu-se aos níveis secundário e terciário; ativou-se a Unidade de Queimados no HRAN e investiu-se no reequipamento da rede de serviços. O Instituto de Saúde Mental foi instalado em regime de hospital-dia e se tornou marco na renovação da assistência psiquiátrica.”

 

Da experiência vivida nos anos 1986/1988 alguns aspectos  merecem  reflexão, ainda mais que muitos persistem até os dias atuais (4):

 

1) Rede de saúde ampla e complexa, com mais de 15.000 empregados à época e gestão muito centralizada;

2) Ausência de um quadro de administradores hospitalares e de ênfase no aperfeiçoamento da qualidade gerencial

3) Rede de Centros e Postos de Saúde com perfil inapropriado de médicos clínicos (em vez de generalistas, inexistentes no mercado, vagas ocupadas por especialistas em clínica médica (muitos com sub-especialização), cuja vocação e desejo era o trabalho hospitalar.

4) Ausência de um sistema de medicina de família com participação de médicos generalistas.

5) Rede física necessitada de manutenção e reparos acima da capacidade operativa da SES/FHDF, desgastes esses muitas vezes provocados por uso inapropriado pelos servidores, pacientes e familiares.

6) Sistema que não premia os melhores servidores, a exemplo da remoção de médicos das cidades satélites para o Plano Piloto pelo critério de antiguidade.

7) Descontinuidade de boas iniciativas e programas, a exemplo do Departamento de Tecnologia e do programa de médicos generalistas da FHDF.

 

BIBLIOGRAFIA:

 

1)                  Redefinição do Sistema de Saúde do Distrito Federal. Conclusões do Grupo de Trabalho. Governo do Distrito Federal. Secretaria de Saúde. 1986.

2)                  Saraiva Felipe, J. e Tavares de Araújo, E. Serviços de Saúde no  Distrito Federal: problemas e tendências.

3)                  Entrevista. Revista da AMBr, nº 39,  agosto de 2003.

4)                  Silva, E. A saga da Fundação Hospitalar do Distrito Federal. Secretaria de Saúde do Distrito Federal. 2.000.

Dr. Laércio Moreira Valença
bottom of page